A Meia
Alice calçou o pé direito da meia e reparou que nunca tinha parado pra pensar sobre o gesto de calçar o pé direito da meia. Ultimamente parava pra pensar sobre cada coisa, todos os movimentos eram lentos e vividos em cada detalhe. Algumas vezes reparava na sua respiração tentando se impor um ritmo mais adequado, e quando queria voltar ao modo inconsciente de respirar era como se não conseguisse, lhe faltava o ar. Não sabia mais respirar sem pensar que tinha que inspirar expirar inspirar expirar até que fosse interrompida por alguém ou algum outro pensamento mais interessante mais urgente – um pensamento mais carente - e esquecesse de vez aquilo tudo.
Andava tendo graves problemas respiratórios. Não que fosse vítima de asma, bronquite, pneumonia. É que suas roupas pareciam apertadas e se sentia sufocada. Tirava a blusa, o sutiã, e agora sua pele parecia apertada. Ela se sentia sufocada e sem saber porque. Na verdade ela sabia muito bem, mas fingia pra todo mundo que conseguia respirar e fingia pra si mesma que desconhecia o que – ou seria o quem? – tirava o ar de seu mundo.
A meia era branca com suas iniciais escritas com pilot pra tecido, mas estava encardida. Quer dizer, a meia tinha sido branca. A.L. Pra quem quisesse ver, desde criança em todas as suas peças de roupa. Na calcinha suja que esqueceu uma vez no banheiro do acampamento e que não pôde fingir que não conhecia. Sua marca estava lá. É verdade que sempre foi bem prática essa coisa do nome nas roupas. De que outra maneira alguém haveria de guardar sem fazer confusão as roupas de três meninas que cresciam juntas que acordavam e dormiam juntas que conversavam sobre qualquer coisa no banheiro uma tomando banho uma cagando uma escovando o dente tudo ao mesmo tempo juntas? Ela tinha que achar outra maneira de distinguir as roupas dos filhos que iria ter um dia.
Ao pegar o pé esquerdo da meia reparou – como sempre – que as duas não formavam originalmente um par, foram reunidas ao acaso no momento de serem guardadas. O tipo de coisa que Alice sempre reparava, e que todo mundo achava a maior besteira. Notava muito bem o local da costura dos dedos, do calcanhar, os acabamentos. Duas meias de cano curto brancas encardidas com suas iniciais escritas e ainda por cima que ficariam bem escondidas dentro do tênis, mas que ela sabia muito bem que não eram par perfeito. No jogo da memória, “quase igual” ou “parecido” nunca valia. Dentro do tênis vale? Ela via seu montinho ficando menor que o de todas as outras pessoas que com certeza estariam usando pés de meia feitos um pro outro, e não unidos assim de qualquer forma.
Pausa para a história dos montinhos: no jogo da memória ninguém tinha paciência de contar os pares conquistados um a um ao longo do jogo. O baralho era de bichos, e ela lembrava até dos desenhos. Aí a solução era empilhar as cartas de cada um em montinhos e ver qual ficava maior.
Parecia que vinha chuva e ela resolveu calçar o par de tênis velho pra não estragar o novo. Não que quisesse estragar o velho, mas não tinha muita opção. Droga! Achou que se ainda tivesse suas galochas vermelhas tudo estaria resolvido. E o guarda-chuva rosa que tombava pro lado porque era muito pesado pra ela carregar com uma mão só... a mão de Alice era pequena. Ela era pequena.
Outro dia andando na rua viu a mãe do menino dizendo pra ele tomar cuidado com as poças e ele estava de galocha. Aquilo nunca conseguia entender quando era criança: porque tomar cuidado com as poças quando se está de galocha? Não é pra isso que elas foram feitas? Será que todos os adultos já tinham esquecido a graça de pular dentro das poças e espirrar água pra todos os lados? Os adultos são mesmo complicados, eles não querem que a gente fique rodando pra não ficar tonta, mas pra que eu iria ficar rodando se não fosse justamente pra ficar tonta tontinha até cair. Aí todo mundo cresce e acha que é bem legal beber pra ficar tonto e pisar na poça sem dar explicação.
Alice é o tipo de garota que anda na rua cantando pulando o que der na telha, e sua irmã diz que ela tem que se comportar e parar com aquilo porque tá todo mundo olhando. Ela fica irritada: “Como e daí? ! Vão achar que você é louca e eu também porque tô do seu lado.”
Normalmente ela só andava rindo pelos cantos, se sentia leve e agora tudo parecia um pouco mais difícil. Até calçar o pé direito da meia, depois o esquerdo, depois os tênis e sair pra rua. Ela tinha levado mais de vinte minutos.
Já fazia um tempo que ela se sentia diferente, que todo mundo achava que ela tava meio estranha, mas quase ninguém comentava. Outro dia mesmo ela foi pro curso mas não saiu do carro. Ficou sozinha no carro ouvindo música até acabar o horário de aula e depois foi pra casa almoçar. Quase não falava com ninguém, também não tinha vontade. Na verdade não tinha muitas coisas pra falar.
Ficou pensando nessas coisas todas a caminho do ponto de ônibus e quando entrou no 433 quis dar bom dia pro motorista – como sempre – mas esqueceu quais eram as palavras. Conseguiu lembrar a tempo de ser simpática com o cobrador, mas ficou se sentindo uma idiota. Desabou o temporal e lhe ocorreu que era melhor ter saído de carro. Tarde demais.
Chegando em Copacabana Moço abre pra mim? desceu pisou direto do degrau numa poça com o tênis velho e a poça entrou dentro do tênis. O pé direito da meia branca encardida que se chamava A.L. como tantas outras estava agora encharcado. O outro pé também. Talvez tivessem mesmo sido feitos um pro outro, coisas do destino. Tiraria as duas assim que chegasse a algum lugar, odiava meia molhada. Pensou que com meia molhada ninguém chega a lugar nenhum. E que definitivamente só se pisa em poça de galocha.
2 Comments:
Lucia, n tem jeito, adoro tudo q voce escreve!Eu adorei, está super bem escrito!mt legal essa mudança.
tava pensando do qnto eu gosto de voce!!!
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